quinta-feira, 5 de junho de 2008

Miss Mag.


Eu chego em casa, já é tarde. E ela dorme como um anjo, um anjo com mãos já velhas e cansadas. Eu queria poder me deitar ao seu lado, me enrolar com o mesmo edredom e ser acordada na manhã seguinte com ela sussurrando no meu ouvido que já está tarde.
Mas já estou aos 18, e ela está aos 44.
E em sua mente, é muito provável que eu ainda tenha 12 anos. Vã ilusão, mãe.
Eu saio de casa nos fins de semana, vou voltar tarde. E a vejo segurando nas mãos o coração que ela carrega no peito, me diz para ter cuidado, olhar para os lados e não beber nada que pessoas desconhecidas me ofereçam. Não tenho mais 14 anos e já aprendi a dirigir.
Eu a amo.
Com ela planejei tantos anos futuros, tantas viagens para algum lugar com neve e chocolate quente e agora, onde esses anos foram parar?
Passaram tão rápido que eu já nem sei mais onde procurar, sumiram.
E vez ou outra eu encontro a porta do quarto dela entreaberta, e ela está deitada na cama lendo um livro ou chorando uma saudade. E eu gostaria muito de entrar e oferecer um chá com rosquinhas, cairia bem numa noite fria. Mas eu fico cinco minutos no mesmo dilema e descubro que sou tímida, tenho vergonha até de dizer que a amo. E ela não é uma estranha para mim, ela nunca foi. Ela é minha mãe, porra.
E além do mais, ela tentou me salvar o tempo todo. Mas não deu certo.
Tentou me proteger das guerras nas ruas, das guerras em casa, me ensinou a fugir do amor e da solidão. Eu preferiria não ter seguido os conselhos que ela me deu, corri tanto do amor que quando ele me pegou eu já não tinha pernas para correr mais, nem força para lutar brutalmente. Foi um erro, o erro mais doce que já pude cometer.
Miss Mag, seria inevitável. Na adolescência até os pseudo-amores nos perturbam, o que dirá daqueles que cravam uma estaca no peito e se prendem à ela? Nunca mais vão embora, e a tristeza vai ficar para sempre presa nas suas artérias, vai estar sempre bombeando o sangue para o seu coração.
E essa é a minha juventude, a vida que eu quis ter para mim. Esses são os amigos que eu sempre pedi e aqueles são os sonhos que eu vou tentar alcançar, e não há pernas cansadas que me impeçam de chegar a tempo.
Essa é minha amargura, a mesma que me fazia chorar durante a noite e você fingia que não via para não atrapalhar meu momento pessoal, tormento pessoal. Seu silêncio me apertava o pescoço, e hoje vejo que foi a melhor opção ter me deixado ali sofrer sozinha, graças a isso eu sobrevivi. Sobrevivi e me protegi do mundo cheio de garras afiadas querendo me capturar, como uma fera captura uma presa. Não capturou, deu certo.
E também consegui fugir do mundo tenebroso que tentava me sugar aos poucos, a partir de dentro, do coração. Fugi sim, já deveria estar acostumada com todo aquele redemoinho de falsidades e traições, mas é errado se acostumar a isso. Fugi mesmo, desse mundo grotesco e sinistro que eu não agüento mais nem sequer ouvir falar.
Desculpa, Miss Mag. Mas eu já jantei esta noite e amanhã não poderemos almoçar juntas porque tenho outras coisas para fazer.
Eu sou sempre tão ausente, e você tão mais ausente e duas ausências acabam editando um vazio. Mesclando o tal vazio numa amargura sem fim, sem cheiro.
E eu o amava de verdade, foi difícil dizer isso. Você que passou tanto tempo me dizendo que era só um namoro de juventude, tenta me explicar essa dor que eu sinto quando lembro que eu e ele nunca mais seremos nós.
Mas eu aprendi a ser forte, aprendi e não vou fraquejar agora, então... Sem demonstrações de afeto da minha parte, por favor. Obrigada.
Não, mãe. Eu não vou lhe deixar, nem quando eu acordar e abrir a janela e ver que estou finalmente em paz. Terei que dividir com você ou não serei inteiramente feliz, sem você eu nunca vou ser feliz. Você carrega a porção de felicidade no meu almoço, o detalhe de felicidade na minha pintura.
E eu carrego para dentro de mim todo o mal que possa lhe atingir e possa tirar a sua paciência do lugar, e isso faz de mim uma menina má, por ter tanta maldade acumulada da cabeça aos pés. Uma moça malvada que passa a tarde escrevendo para não ter que descontar a dor em ninguém. Em ninguém.
E você não fez nada para merecer alguém como eu para ocupar o lugar de filha do meio, pelo contrário, você merecia um anjo no meu lugar. Do tipo de anjo doce que não enjoa, mas ocorreu uma desavença e cá estou eu, dizendo que te amo por escrito, por ser fraca a ponto de não conseguir falar.
Eu te amo.
Te amo a ponto de deixar você por aqui e sair por aí à procura de outros horizontes, outros caminhos diferentes do que você construiu para mim. Não quero isso para mim, quero construir sozinha.
Te amo a ponto de entender que para você eu só mais um erro, e que todos os meus defeitos não têm nada a ver com genética, eu vim só para lhe fazer pagar pelos seus erros, pecados do passado.
Você poderia ser mais simpática às vezes, eu não pedi para nascer. Não mesmo.
Eu não queria ser uma decepção para você, queria poder lhe fazer rir o tempo inteiro e saber temperar o camarão que lhe faz lamber os dedos, mas eu estou sempre tão ausente, estou o tempo todo num mundinho paralelo, seja ele bom ou ruim, eu só nunca estou ali.
Nunca estou para fechar o zíper de trás do seu vestido preto, nem para lhe abraçar e dizer que sinto saudades suas o tempo todo. O tempo todo.
Você é uma pessoa incrível, e não há nada e nem ninguém que eu ame mais do que amo a você.
E um dia eu vou embora, mãe.
Vou embora para um lugar que eu possa andar nas ruas sem querer desistir de tudo, vou tentar fugir das bombas, do mal olhado e dos maliciosos. Eu só quero estar longe porque eu não suporto mais seu semblante de decepção o tempo inteiro que eu me aproximo. Eu quero estar longe porque eu não agüento mais lhe fazer chorar de preocupação por não saber onde eu estive a noite inteira, embora eu não estivesse fazendo nada demais.
Para mim já chega, isso tudo é o bastante.
Eu quero ir embora porque eu não quero mais que você também me veja chorar, e não quero mais atrapalhar seus planos e nem lhe fazer perder a partida do jogo que você já está viciada a jogar.
Eu quero ir embora porque eu não consigo mais viver presa a um passado tão próximo, presa a tantos erros e tropeços.
Quero ir embora porque não suporto mais a angústia servida no meu prato de café da manhã e dormindo ao meu lado na minha cama tão pequena. Não suporto mais ver você triste e saber que grande parte da tristeza que esses olhinhos misericordiosos carregam, é minha. Muito minha.
Quando eu for embora, eu quero te ver usando a roupa que você mais gostar e o sorriso mais bonito.
Eu sei que eu nunca mais vou voltar.
Quero que fique na memória o brilho dos seus olhos, o calor do seu abraço, sua voz sempre tão linda e sempre tão doce.
Quero te levar comigo e te deixar aqui ao mesmo tempo, eu não sei viver sem você e não quero nunca aprender.
Eu não quero lhe dizer Adeus, nem lhe deixar para sempre. Na verdade, eu vou estar sempre quando você precisar. Eu só não quero atrapalhar quando você não precisar de alguém lhe atormentando o juízo.
Quero lhe deixar sobre a cama um buquê de rosas vermelhas e outro com flores do campo, jasmins, margaridas, orquídeas, lírios lindos e uma fita vermelha prendendo uma a outra.
Quero deixar um quadro pintado, um livro fechado, um filme ligado e um “eu te amo” sincero.
Eu nunca imaginei que ir embora doesse tanto, não quero nem pensar se você for embora antes de mim. Nunca vá.

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