terça-feira, 25 de março de 2008

Ela em poucas linhas naquela noite.

[Na foto: Beatriz Nogueira]

Os olhos dela chegavam estar pequenininhos, era a única prova concreta de que ela havia chorado a noite inteira. Mas eu não queria prova concreta, o olhar dela dizia tudo, dizia tudo e mais um pouco: Dizia alguém.
Eu me recordo bem da fisionomia do rapaz, cabelos longos, estrutura alta, sorriso cativante e poucas palavras, era ele quem roubava as palavras dela, os olhares e também a voz.
Aquele silêncio que ela mantinha desde de quando havia sentado à mesa, me atingia como uma flecha, me atravessava o peito de um lado ao outro. E o olhar fixo que ela mantinha em qualquer coisa, vidrava o meu olhar no olhar dela, e os raios de olhares iam atravessando as garrafas que estavam postas sobre a mesa. Vez ou outra ela deixava escapar um sorriso, deveria estar lembrando dos bons momentos trancados no baú do passado, junto dele - é claro - deveria ser isso mesmo, não quis perguntar, ela respondia por si só.
Mas eu lembro bem daquela noite, cabelos cacheados, duas presilhas enlaçavam duas nuas fitas de cabelo de um lado só, como faziam nas crianças em épocas mais antigas, medievais.
Sapato de boneca, era esse o tipo de sapato que ela estava usando, preto e tinha um salto bem pequeno para quebrar aquele aspecto infantil, e usava também um short bem curto, deixando de fora o machucado no joelho e umas pernas meio brancas do tipo que não vê sol há anos.
Eu a observava sempre que podia, até que alguém me puxasse para uma conversa boba, qualquer. Ela não falava nada, ou quase nada, vez ou outra perguntava onde estava o isqueiro. A minha boneca fumava, fumava e chorava que nem sentia. E nas poucas vezes que sorria, era mecânico, mas me suavizava, de alguma maneira que eu não consigo explicar. Eu lhe enxugava as lágrimas com as asneiras desengonçadas que eu sabia que ela gostava de ouvir, minha pequena. Pela primeira vez sofrendo por amor, eu lhe disse que isso ia passar, lhe disse que nos próximos dezessete anos ela encontraria alguém melhor que ele, odiava ter que mentir pra ela.
Ela sabia que era tudo mentira, que eram frases ditasapenas para um conforto permanente, mas o que eu poderia fazer? Além de mentir. Menti. Eu sabia que ela não gostaria tanto de mais ninguém na vida. Mas valia tudo neste mundo vê-la esquecê-lo por cinco minutinhos apenas, tempo pra sorrir, falar algo bom, coisa que ela sabia muito bem fazer quando ele não a tinha deixado só.
Horas mais tarde, depois de conversas sobre carros, viagens e loucuras, já era a hora de ir embora, voltar para a casa vazia e para o quarto cheio de nada que só ela sabia como aquilo tirava o ar. Quando ela entrou no carro, acendeu o último cigarro da madrugada. Crente que ia chegar em casa e estaria tudo no mesmo lugar, todas as dores estariam no mesmo cobertor, todas as raivas embaixo da mesma cama e todo e qualquer medo estaria dobrado debaixo do colchão, não foi bem assim.
Começou a chover bem forte, ela queria ligar pra ele, mas eu não queria que ela ligasse, eu disse isso à ela. Ela não ligou.
Então chegou em casa, dilacerada, reduzida a pedaços bem pequenos, e acabou por saber que ele havia ido vê-la e ela não estava, foi embora e deixou bem claro que nunca mais voltaria só por causa dessa noite que ela se ausentou - Determinados homens, sei não viu.- , imaginei que choraria como nas noites anteriores, mas não.
Ela me ligou no mesmo instante, sorrindo e falou “Ele veio.”
Naquele momento, a madrugada chuvosa e fria já não era tão gélida assim, era como se eu houvesse causado algum bom efeito nela, como se as minhas "mentiras" e verdades houvessem atingido algo dentro dela, atingiu, eu consegui.
Eu sorri de volta e falei que era para ela ir dormir, ele só a machucava nas horas vagas e nas outras horas também.
Ela escreveu um pouco - pois essa sede ela nunca sacia – e foi dormir. Deve ter sido uma noite boa pra ela, ou pelo menos não tão ruim, ao menos, não tinha soluços baixos e nem aquela sempre viva vontade de morrer. A caixa de Lexotan está intacta, prestei atenção pela manhã.

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